Breno
Lopes
Todo
buscador espiritual tem uma qualidade especial: a audácia. A audácia
de querer, de ter certeza do que quer, a audácia de querer tudo, de
querer o infinito. Ele não quer felicidade que vem e vai, quer a
essência, quer saber o porque de tudo e só se contenta com a
plenitude. Pergunte a um buscador sincero: “- Você quer felicidade
amanhã?” Ele diz: “- Não, tem que ser agora e para sempre!”
Insista: “- Você quer todos os prazeres e riquezas deste mundo?”
E ele, sem piscar: “- Não, não. Pode ficar para você.” Como
último golpe, pergunte ainda: “- Você quer ir para o céu,
sentar-se ao lado de Deus e dos anjos?” Ele, o sincero buscador da
verdade, debocha: “- Não me interessa nem um pouco!” Há que ser
direto: “- O que você quer da vida então?” Agora ele se revela:
“- Da vida quero o néctar e do néctar quero a doçura. Quero
sentar no meu trono de paz e observar meu reino de alegrias. Um dia
me disseram que sou ilimitado, que a tristeza não existe e eu
acreditei de todo o coração. Eu vou me descobrir como este ser
completo. Na verdade não tenho escolha, pois se eu já sou tudo,
então só posso querer tudo. Que sorte a minha, eu já sou tudo!”.
Para
o sincero buscador da verdade só uma coisa interessa: obviamente, a
descoberta da verdade. Nessa busca, dependendo de sua entrega e
seriedade, sua compreensão da realidade torna-se cada vez mais
completa e, eventualmente, chega ao fim de sua busca, que é o
conhecimento da realidade de todas as coisas e de si mesmo. Nesse
estado, reconhece-se como pura felicidade, pois, se sua compreensão
instantânea da realidade atingiu a integralidade, não busca nem
deseja mais nada, é “um” com tudo que existe e pode relaxar na
certeza e completude de sua visão.
Essa
determinação inabalável e seriedade de propósito é um
pré-requisito insubstituível do caráter do sadhaka (praticante).
É ela que determina os meios (sadhana)
utilizados para atingir sua meta (sadhya),
a libertação. Com o propósito de sua vida definido, naturalmente
os caminhos do auto conhecimento se abrem. É fundamental saber que a
meta é o mais importante e não os meios utilizados para atingi-la,
que embora úteis devem ser descartados no devido tempo.
Essa
realidade última, essência de tudo que existe, brahman, não
é um objeto disponível a apreciação sensorial e portanto sua
intuição imediata, o conhecimento de sua realidade, é um ato
puramente cognitivo, ou seja, embora a análise da experiência seja
uma etapa inevitável da busca espiritual, nenhuma experiência
poderá trazer o auto conhecimento pois o “objeto” da busca não
é em absoluto um objeto e sim o eterno sujeito. As dificuldades
portanto dessa busca da verdade são inúmeras e o buscador pode
facilmente perder-se em meio a tantos “caminhos” disponíveis.
Torna-se então de grande importância alguma orientação neste
sentido visando colocar em contexto os diversos meios utilizados para
o conhecimento da realidade e suas funções no decorrer do
aprendizado, ou em outras palavras, o que se pode fazer e para que.
Podemos
dividir os diversos sadhanas possíveis
em duas classes básicas. A primeira visa a purificação mental
(antahkarana
suddhih)
e dela fazem parte disciplinas como a meditação, puja,
karma yoga, hatha yoga, upasana yoga,
trabalho voluntário, peregrinações, etc. Enfim, qualquer ação
que traga tranquilidade mental e consequentemente, maturidade
emocional. É necessário que se possua uma mente relativamente livre
de conflitos para que se possa praticar o segundo tipo
de sadhana, jñana
yoga,
o yoga do conhecimento, o estudo dirigido das ideias contidas
nas upanishads chamado
de vedanta,
a ferramenta de auto conhecimento por excelência. Para tanto o
professor de vedanta utiliza-se
de vários prakriyas,
que são métodos de ensino peculiares designados para esclarecer
todas as dúvidas possíveis sobre a natureza do Ser, cada assunto
abordado sob um ângulo diferente, como por exemplo os “três
corpos”, “as cinco camadas da personalidade”, “os três
gunas” ou “a discriminação entre sujeito e objeto”. Cada uma
dessas discussões possibilita uma aproximação diferente ao tema
central do vedanta,
a realidade una e ilimitada, minha real natureza.
Para
que o questionamento traga frutos em forma de conhecimento, o estudo
deve ser contínuo e sistemático. Contínuo, porque a construção
do conhecimento é sempre baseada em um entendimento prévio, que
forma a base para o entendimento futuro. E como em uma construção
onde o tijolo deve ser colocado sobre o cimento ainda fresco, assim
funciona o vedanta:
sistematicamente, o aluno, através de inúmeras e frequentes aulas
com um professor competente, vai removendo uma a uma suas falsas
noções sobre si mesmo. O método consiste em ouvir (sravanam),
refletir sobre o assunto até entendê-lo totalmente (mananam) e por
último, “praticar” o conhecimento, contemplar a realidade não
dual e meditar sobre suas implicações (nididhyasanam). É aqui,
nesta última etapa, onde o vedanta mostra
sua eficácia, pois se a visão de si mesmo, adquirida através do
estudo, é livre de conflitos, torna-se natural observá-la em todas
as situações da vida prática. Isso é ser “um” com tudo que
existe, é deixar o conhecimento invadir a mente por completo através
da apreciação intermitente da totalidade indivisível. Um dos
frutos dessa apreciação é a neutralização das reações
emocionais negativas que brotam da natureza dual da identificação
egoica. É a ausência absoluta de conflito no nível subjetivo
proveniente do entendimento de que o sujeito é tudo o que existe.
A
mente humana é especialmente talentosa em funções como julgar,
separar e analisar, o que torna a tarefa de evitar conflitos
psicológicos bastante complexa, pois onde existe “dois”, existe
interação e toda interação implica em conflito. No jogo entre
causas e efeitos do mundo material não pode haver vencedor. Os
efeitos sucedem as causas em um fluxo sem começo nem fim. Diante da
transitoriedade das coisas, uma pergunta pode surgir na mente do
buscador: “- Como permanecer em paz se tudo muda ao meu redor?”.
A resposta está na própria pergunta (apesar da semelhança, isso
não é koan zen,
é vedanta mesmo).
O que nunca muda por trás de qualquer pergunta é o sujeito que faz
a pergunta. Na ânsia de obter uma resposta convincente, que nos
satisfaça enquanto ego, esquecemos da pergunta principal: “- Quem
necessita de respostas e porque as necessita?”.
O
problema é que, sempre que me identifico com o sujeito que faz (por
exemplo, uma pergunta), me encontro inevitavelmente perdido em meio a
dança das causas e efeitos, sou escravo dos resultados de minhas
ações, sou um samsari.
Como causas e efeitos não tem começo, nem fim, não posso resolver
este dilema através de ações, que gerariam novos resultados.
O vedanta esclarece
que, visto ser impossível controlar o mundo de modo a satisfazer
todos os nossos desejos e então conseguirmos felicidade constante,
só nos resta entender e aceitar a inutilidade desta luta e nos
apegarmos a quem realmente somos, o palco onde o drama da vida
acontece. Essa essência, substrato único de tudo o que existe,
sendo ela mesma a própria existência sempre consciente e livre de
qualquer atributo, é portanto naturalmente livre de qualquer
conflito.
É
importante esclarecer que a ação (karma)
nasce do desejo (kama),
que por sua vez nasce do senso de incompletude (apurnatvam),
este, por fim, nascido da ignorância (avidya).
Sem a aceitação de que nenhuma ação pode remover a ignorância,
não pode haver o entendimento de que só o conhecimento liberta,
pois revela a incoerência do nosso senso de incompletude e
limitação. Essa aceitação começa com o reconhecimento de que a
vontade individual está submetida a vontade universal, a totalidade
de todas as leis naturais, conhecidas e desconhecidas, isvara. A
relação de submissão do indivíduo (jiva)
perante o todo (isvara)
é um dos pilares necessários para dar sustentação as ideias de
não dualidade, já que aparta do indivíduo o apego a expectativa
dos resultados promovidos por suas ações.
A
verdade é que não precisamos nos preocupar com um problema sem
solução. Toda ação produz resultados transitórios e
limitados, e o limitado nunca pode produzir o ilimitado. Se não há
uma felicidade alcançável através de ações, só há uma saída
possível para este impasse: É o entendimento de que eu já sou a
felicidade que procuro, ou como diz o ditado, “se não tem remédio,
remediado está”. Sempre esteve e sempre estará. Essa atitude de
confiança e relaxamento prepara a mente para que as palavras
do vedanta produzam
seu efeito, a tão sonhada felicidade sem causa vinda do auto
conhecimento, da certeza além de toda dúvida de que Eu sou
completo, de que nada me falta. É esta a visão não dual revelada
nas upanishads e
ensinada a todo buscador sincero que tenha firmeza de propósito,
humildade e audácia.
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