quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O buscador espiritual e as ferramentas de busca




Breno Lopes

      Todo buscador espiritual tem uma qualidade especial: a audácia. A audácia de querer, de ter certeza do que quer, a audácia de querer tudo, de querer o infinito. Ele não quer felicidade que vem e vai, quer a essência, quer saber o porque de tudo e só se contenta com a plenitude. Pergunte a um buscador sincero: “- Você quer felicidade amanhã?” Ele diz: “- Não, tem que ser agora e para sempre!” Insista: “- Você quer todos os prazeres e riquezas deste mundo?” E ele, sem piscar: “- Não, não. Pode ficar para você.” Como último golpe, pergunte ainda: “- Você quer ir para o céu, sentar-se ao lado de Deus e dos anjos?” Ele, o sincero buscador da verdade, debocha: “- Não me interessa nem um pouco!” Há que ser direto: “- O que você quer da vida então?” Agora ele se revela: “- Da vida quero o néctar e do néctar quero a doçura. Quero sentar no meu trono de paz e observar meu reino de alegrias. Um dia me disseram que sou ilimitado, que a tristeza não existe e eu acreditei de todo o coração. Eu vou me descobrir como este ser completo. Na verdade não tenho escolha, pois se eu já sou tudo, então só posso querer tudo. Que sorte a minha, eu já sou tudo!”.       
   Para o sincero buscador da verdade só uma coisa interessa: obviamente, a descoberta da verdade. Nessa busca, dependendo de sua entrega e seriedade, sua compreensão da realidade torna-se cada vez mais completa e, eventualmente, chega ao fim de sua busca, que é o conhecimento da realidade de todas as coisas e de si mesmo. Nesse estado, reconhece-se como pura felicidade, pois, se sua compreensão instantânea da realidade atingiu a integralidade, não busca nem deseja mais nada, é “um” com tudo que existe e pode relaxar na certeza e completude de sua visão.
  Essa determinação inabalável e seriedade de propósito é um pré-requisito insubstituível do caráter do sadhaka (praticante). É ela que determina os meios (sadhana) utilizados para atingir sua meta (sadhya), a libertação. Com o propósito de sua vida definido, naturalmente os caminhos do auto conhecimento se abrem. É fundamental saber que a meta é o mais importante e não os meios utilizados para atingi-la, que embora úteis devem ser descartados no devido tempo.
    Essa realidade última, essência de tudo que existe, brahman, não é um objeto disponível a apreciação sensorial e portanto sua intuição imediata, o conhecimento de sua realidade, é um ato puramente cognitivo, ou seja, embora a análise da experiência seja uma etapa inevitável da busca espiritual, nenhuma experiência poderá trazer o auto conhecimento pois o “objeto” da busca não é em absoluto um objeto e sim o eterno sujeito. As dificuldades portanto dessa busca da verdade são inúmeras e o buscador pode facilmente perder-se em meio a tantos “caminhos” disponíveis. Torna-se então de grande importância alguma orientação neste sentido visando colocar em contexto os diversos meios utilizados para o conhecimento da realidade e suas funções no decorrer do aprendizado, ou em outras palavras, o que se pode fazer e para que.
        Podemos dividir os diversos sadhanas possíveis em duas classes básicas. A primeira visa a purificação mental (antahkarana suddhih) e dela fazem parte disciplinas como a meditação, puja, karma yoga, hatha yoga, upasana yoga, trabalho voluntário, peregrinações, etc. Enfim, qualquer ação que traga tranquilidade mental e consequentemente, maturidade emocional. É necessário que se possua uma mente relativamente livre de conflitos para que se possa praticar o segundo tipo de sadhanajñana yoga, o yoga do conhecimento, o estudo dirigido das ideias contidas nas upanishads chamado de vedanta, a ferramenta de auto conhecimento por excelência. Para tanto o professor de vedanta utiliza-se de vários prakriyas, que são métodos de ensino peculiares designados para esclarecer todas as dúvidas possíveis sobre a natureza do Ser, cada assunto abordado sob um ângulo diferente, como por exemplo os “três corpos”, “as cinco camadas da personalidade”, “os três gunas” ou “a discriminação entre sujeito e objeto”. Cada uma dessas discussões possibilita uma aproximação diferente ao tema central do vedanta, a realidade una e ilimitada, minha real natureza.
        Para que o questionamento traga frutos em forma de conhecimento, o estudo deve ser contínuo e sistemático. Contínuo, porque a construção do conhecimento é sempre baseada em um entendimento prévio, que forma a base para o entendimento futuro. E como em uma construção onde o tijolo deve ser colocado sobre o cimento ainda fresco, assim funciona o vedanta: sistematicamente, o aluno, através de inúmeras e frequentes aulas com um professor competente, vai removendo uma a uma suas falsas noções sobre si mesmo. O método consiste em ouvir (sravanam), refletir sobre o assunto até entendê-lo totalmente (mananam) e por último, “praticar” o conhecimento, contemplar a realidade não dual e meditar sobre suas implicações (nididhyasanam). É aqui, nesta última etapa, onde o vedanta mostra sua eficácia, pois se a visão de si mesmo, adquirida através do estudo, é livre de conflitos, torna-se natural observá-la em todas as situações da vida prática. Isso é ser “um” com tudo que existe, é deixar o conhecimento invadir a mente por completo através da apreciação intermitente da totalidade indivisível. Um dos frutos dessa apreciação é a neutralização das reações emocionais negativas que brotam da natureza dual da identificação egoica. É a ausência absoluta de conflito no nível subjetivo proveniente do entendimento de que o sujeito é tudo o que existe.
       A mente humana é especialmente talentosa em funções como julgar, separar e analisar, o que torna a tarefa de evitar conflitos psicológicos bastante complexa, pois onde existe “dois”, existe interação e toda interação implica em conflito. No jogo entre causas e efeitos do mundo material não pode haver vencedor. Os efeitos sucedem as causas em um fluxo sem começo nem fim. Diante da transitoriedade das coisas, uma pergunta pode surgir na mente do buscador: “- Como permanecer em paz se tudo muda ao meu redor?”. A resposta está na própria pergunta (apesar da semelhança, isso não é koan zen, é vedanta mesmo). O que nunca muda por trás de qualquer pergunta é o sujeito que faz a pergunta. Na ânsia de obter uma resposta convincente, que nos satisfaça enquanto ego, esquecemos da pergunta principal: “- Quem necessita de respostas e porque as necessita?”.
        O problema é que, sempre que me identifico com o sujeito que faz (por exemplo, uma pergunta), me encontro inevitavelmente perdido em meio a dança das causas e efeitos, sou escravo dos resultados de minhas ações, sou um samsari. Como causas e efeitos não tem começo, nem fim, não posso resolver este dilema através de ações, que gerariam novos resultados. O vedanta esclarece que, visto ser impossível controlar o mundo de modo a satisfazer todos os nossos desejos e então conseguirmos felicidade constante, só nos resta entender e aceitar a inutilidade desta luta e nos apegarmos a quem realmente somos, o palco onde o drama da vida acontece. Essa essência, substrato único de tudo o que existe, sendo ela mesma a própria existência sempre consciente e livre de qualquer atributo, é portanto naturalmente livre de qualquer conflito.
        É importante esclarecer que a ação (karma) nasce do desejo (kama), que por sua vez nasce do senso de incompletude (apurnatvam), este, por fim, nascido da ignorância (avidya). Sem a aceitação de que nenhuma ação pode remover a ignorância, não pode haver o entendimento de que só o conhecimento liberta, pois revela a incoerência do nosso senso de incompletude e limitação. Essa aceitação começa com o reconhecimento de que a vontade individual está submetida a vontade universal, a totalidade de todas as leis naturais, conhecidas e desconhecidas, isvara. A relação de submissão do indivíduo (jiva) perante o todo (isvara) é um dos pilares necessários para dar sustentação as ideias de não dualidade, já que aparta do indivíduo o apego a expectativa dos resultados promovidos por suas ações.
       A verdade é que não precisamos nos preocupar com um problema sem solução. Toda ação  produz resultados transitórios e limitados, e o limitado nunca pode produzir o ilimitado. Se não há uma felicidade alcançável através de ações, só há uma saída possível para este impasse: É o entendimento de que eu já sou a felicidade que procuro, ou como diz o ditado, “se não tem remédio, remediado está”. Sempre esteve e sempre estará. Essa atitude de confiança e relaxamento prepara a mente para que as palavras do vedanta produzam seu efeito, a tão sonhada felicidade sem causa vinda do auto conhecimento, da certeza além de toda dúvida de que Eu sou completo, de que nada me falta. É esta a visão não dual revelada nas upanishads e ensinada a todo buscador sincero que tenha firmeza de propósito, humildade e audácia.


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