sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

É exatamente isso, e nada mais



 Breno Lopes


“Quando a mente perfeitamente controlada, livre da ânsia pelos objetos mundanos, é direcionada ao Ser, ela permanece no Ser.” (B.G. 6,18)

            Parece existir um consenso, em todas as tradições espirituais, de que uma mente agitada ou impura é um grande empecilho à realização da Verdade. Concentração, foco, tranquilidade, são qualidades altamente desejáveis para a realização de qualquer atividade, mesmo as mais enérgicas. Quando falamos de autoconhecimento, essas qualidades são fundamentais, chegando mesmo a serem um pré-requisito. A prática regular de meditação traz como resultado a singular capacidade de observação impassível do fluxo de pensamentos, assim como a capacidade de manter a atenção direcionada a um único objeto, o que alguns chamam de “mente una” (ekagrata).
            As escrituras nos dizem que há um erro básico em nossa percepção da realidade, que não somos quem pensamos ser e que a realidade é infinitamente melhor do que nossos sentidos nos apresentam. Dizem com clareza que somos a própria realidade imperecível, livre de qualquer atributo ou limitação. Á primeira vista, declarações como esta parecem ser “boas demais para serem verdadeiras”. Nossa convicção sobre nós mesmos sempre foi a de que somos pessoas, vivemos no mundo e estamos condenados à morte, inevitavelmente. A visão das escrituras é radicalmente oposta a nossa visão atual e, portanto, de difícil assimilação. O mundo externo parece ser real, enquanto o chamado mundo interior, a paz interior, a alegria do silêncio interno, parece ser irreal, ou pelo menos, de difícil acesso.
            A felicidade suprema, meta única de toda e qualquer pessoa, é uma porta sempre aberta, mas cuja passagem envolve um certo grau de esforço e fé. Não falo aqui de uma fé cega, dogmática e submissa, mas sim da fé que brota da coragem de assumir a responsabilidade por tudo o que nos acontece, ou seja, pela própria felicidade. O caminho é individual, a busca é individual, a verdade é um estado subjetivo e portanto só pode ser apreciada por quem decide ser tudo o que pode ser, por quem está disposto a “lutar o bom combate”, como lutou o apóstolo Paulo.
            Pois bem, este combate é interno. Nossa luta se trava no mundo interior, na mente, que devido ao reflexo da pura consciência onipresente (cidabhasa), identifica-se com o corpo, criando uma entidade chamada “Eu”, o ego, causa de todos os nossos problemas. A ideia de que somos essencialmente separados do resto do mundo estabelece as bases de nossa interação com este. Cria a dualidade, o conflito. Onde há “dois”, existe interação e toda interação pressupõe finitude, pelo desgaste ou troca inevitável.
            Quando intencionalmente ou mesmo por acaso aquietamos nossa mente, nosso corpo sempre reage de forma favorável, gerando sensações e emoções agradáveis. A esse controle do fluxo dos pensamentos e treino sistemático da atenção chamamos meditação. Uma mente calma, livre de conflitos, possibilita o direcionamento da atenção ao que realmente nos interessa, a apreciação da felicidade onipresente. Se o que queremos é vermos a nós mesmos como a realidade ilimitada e atemporal, precisamos de uma mente treinada a manter o foco e evitar distrações que nos afastam deste objetivo.
Podemos didaticamente dividir a prática da meditação em duas etapas complementares. Num primeiro momento a meditação visa tranquilizar corpo e mente, preparando o terreno para o desenvolvimento da atenção consciente. Atenção e foco são qualidades importantes para o estudo que conduzirá o praticante ao conhecimento de si próprio. Nesta etapa o objetivo principal é a “purificação” da mente, no sentido de minimizar as manifestações (gostos e aversões) das tendências individuais (vasanas). Esse árduo trabalho deve ser complementado e de preferência precedido pela prática de karma yoga, a ação dedicada a Deus, desprovida de motivos egoístas. Aqui o progresso pode ser medido pela alegria proveniente da prática, uma alegria que não vem do exterior, fato este que contradiz o erro habitual de crer que os objetos externos são responsáveis pela alegria interna.
Após o conhecimento inequívoco de sua própria natureza, num segundo momento, a meditação ajuda o buscador a manter-se constantemente identificado a consciência de si mesmo como eternidade, liberdade e felicidade. Quando o meditador estabelece-se nesta consciência, que tudo inclui, deixa de ser um buscador, torna-se o que sempre foi, o Si-mesmo.
            Talvez o efeito mais evidente da meditação seja o contentamento com “o que É”. Sendo o ego um centro fictício de transações com o mundo, identificar-se com ele cria uma constante oposição à realidade. Um exemplo prático e corriqueiro pode expressar melhor essa ideia: Se no momento sinto dor, por exemplo, a mente, para preservar a “integridade” do ego, cria imediatamente a ideia de não-dor. Mas o que existe de fato no presente momento, é apenas a dor, e portanto não é possível viver uma presente não-dor, mas apenas projetá-la em um futuro próximo ou distante. A pessoa que identifica-se com o ego vive no passado ou no futuro. Recorda o passado para validar seu estado atual e projeta o futuro fantasiando um estado melhor. Acontece que a vida, “o que É”, é agora e para sempre agora. Não existe melhor nem pior, só existe perfeito.
            Meditação é a prática de viver a vida. Que objetivo melhor pode uma pessoa ter na vida, senão vivê-la? Não vivê-la melhor, isso já fazemos usando nossas estratégias habituais de manipulação de coisas e pessoas incluindo a nós mesmos, mas sim vivê-la integralmente, tão intimamente conectado ao fluxo de acontecimentos, que já não há mais “quem”, apenas “o que”. A personalidade, no estado profundo de meditação, perde o status de centro pelo qual a vida passa, Ganha um novo status, o de uma mera aparência, surgindo e desaparecendo espontaneamente e inevitavelmente como parte desse jogo cósmico que é o mundo dos nomes e formas.
            A realidade desprovida de nomes e formas é pura bem-aventurança-sempre-alerta, a eterna verdade transcendente pulsando como o próprio coração de toda partícula de matéria existente. Não é a essência de tudo. Isso dividiria o universo em essencial e não essencial. É o amplo espaço que tudo abrange e ao mesmo tempo, que tudo “É”. Para viver esta verdade é preciso ser esta realidade. Meditar, por este enfoque, torna-se um ato de pura coragem. É deixar de lado passado e futuro, o que implica em deixar de lado a própria personalidade, e permanecer na consciência livre de conflitos, livre de carências, plena de si-mesma.
            Sentar-se em meditação é uma aventura de encontro ao Si-mesmo, a realidade única. Para que tenhamos sucesso nessa empreitada é necessário honestidade e serenidade, pois precisamos fazer da vontade um instrumento efetivo de transformação dos hábitos. O discernimento entre o real e o irreal pode na meditação ser praticado até o ponto onde não haja mais dúvidas sobre a fonte de toda alegria. Essa fonte é o “Ser”. A alegria que sentimos eventualmente é apenas um frágil reflexo da alegria abundante que somos desde sempre. E é exatamente por amarmos a nós mesmos mais do que qualquer outra coisa, que fazemos de tudo para remover os obstáculos que atrapalham nossa compreensão convicta dessa realidade. E a realidade sou “Eu”. Toda e qualquer prática visa em última análise manter a mente num estado de contemplação ininterrupta da realidade, a consciência que tudo abraça, a única “coisa” que não sofre qualquer tipo de transformação no presente, passado ou futuro.
            O último e mais difícil obstáculo à permanência em si mesmo, é o apego à alegria e bem estar resultante do estado de meditação profunda. Este obstáculo foi apontado por Gaudapadacharya no Mandukya Karika (verso 45):
            “Não devemos deixar que a mente desfrute da alegria proveniente da condição de samadhi. Ela deve ser liberada do apego a esta alegria através do constante exercício da discriminação. Se a mente procura sair em direção aos objetos externos, ela deve ser unificada ao Ser pelo esforço consciente.” (tradução livre)
            A alegria que vem da meditação não pode ser confundida com a consciência que ilumina todo e qualquer estado mental. Estados mentais vêm e vão, mas a consciência permanece. A única identificação que possibilita a definitiva libertação do samsara é a identificação com o espaço da consciência, livre de pensamentos. Essa identificação passa pela aceitação das coisas como elas são, de todo o passado e de todas as condições presentes agora. Passa pela compreensão de que existe uma ordem cósmica justa e amorosa (isvara) cuidando de tudo, atualizando momento a momento o fluxo dos acontecimentos. Essa ordem também existe na consciência e a consciência sou Eu.
            A consciência é livre de qualquer coisa. A única solução possível para o fim do sofrimento humano é a identificação com essa consciência (brahman). Como fruto desta identificação convicta, a tão aclamada e aguardada felicidade.

            “Quando o grande mestre zen Fa-ch'ang estava morrendo, um  esquilo guinchou do alto do telhado. "É exatamente isso", disse ele, "e nada mais

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O buscador espiritual e as ferramentas de busca




Breno Lopes

      Todo buscador espiritual tem uma qualidade especial: a audácia. A audácia de querer, de ter certeza do que quer, a audácia de querer tudo, de querer o infinito. Ele não quer felicidade que vem e vai, quer a essência, quer saber o porque de tudo e só se contenta com a plenitude. Pergunte a um buscador sincero: “- Você quer felicidade amanhã?” Ele diz: “- Não, tem que ser agora e para sempre!” Insista: “- Você quer todos os prazeres e riquezas deste mundo?” E ele, sem piscar: “- Não, não. Pode ficar para você.” Como último golpe, pergunte ainda: “- Você quer ir para o céu, sentar-se ao lado de Deus e dos anjos?” Ele, o sincero buscador da verdade, debocha: “- Não me interessa nem um pouco!” Há que ser direto: “- O que você quer da vida então?” Agora ele se revela: “- Da vida quero o néctar e do néctar quero a doçura. Quero sentar no meu trono de paz e observar meu reino de alegrias. Um dia me disseram que sou ilimitado, que a tristeza não existe e eu acreditei de todo o coração. Eu vou me descobrir como este ser completo. Na verdade não tenho escolha, pois se eu já sou tudo, então só posso querer tudo. Que sorte a minha, eu já sou tudo!”.       
   Para o sincero buscador da verdade só uma coisa interessa: obviamente, a descoberta da verdade. Nessa busca, dependendo de sua entrega e seriedade, sua compreensão da realidade torna-se cada vez mais completa e, eventualmente, chega ao fim de sua busca, que é o conhecimento da realidade de todas as coisas e de si mesmo. Nesse estado, reconhece-se como pura felicidade, pois, se sua compreensão instantânea da realidade atingiu a integralidade, não busca nem deseja mais nada, é “um” com tudo que existe e pode relaxar na certeza e completude de sua visão.
  Essa determinação inabalável e seriedade de propósito é um pré-requisito insubstituível do caráter do sadhaka (praticante). É ela que determina os meios (sadhana) utilizados para atingir sua meta (sadhya), a libertação. Com o propósito de sua vida definido, naturalmente os caminhos do auto conhecimento se abrem. É fundamental saber que a meta é o mais importante e não os meios utilizados para atingi-la, que embora úteis devem ser descartados no devido tempo.
    Essa realidade última, essência de tudo que existe, brahman, não é um objeto disponível a apreciação sensorial e portanto sua intuição imediata, o conhecimento de sua realidade, é um ato puramente cognitivo, ou seja, embora a análise da experiência seja uma etapa inevitável da busca espiritual, nenhuma experiência poderá trazer o auto conhecimento pois o “objeto” da busca não é em absoluto um objeto e sim o eterno sujeito. As dificuldades portanto dessa busca da verdade são inúmeras e o buscador pode facilmente perder-se em meio a tantos “caminhos” disponíveis. Torna-se então de grande importância alguma orientação neste sentido visando colocar em contexto os diversos meios utilizados para o conhecimento da realidade e suas funções no decorrer do aprendizado, ou em outras palavras, o que se pode fazer e para que.
        Podemos dividir os diversos sadhanas possíveis em duas classes básicas. A primeira visa a purificação mental (antahkarana suddhih) e dela fazem parte disciplinas como a meditação, puja, karma yoga, hatha yoga, upasana yoga, trabalho voluntário, peregrinações, etc. Enfim, qualquer ação que traga tranquilidade mental e consequentemente, maturidade emocional. É necessário que se possua uma mente relativamente livre de conflitos para que se possa praticar o segundo tipo de sadhanajñana yoga, o yoga do conhecimento, o estudo dirigido das ideias contidas nas upanishads chamado de vedanta, a ferramenta de auto conhecimento por excelência. Para tanto o professor de vedanta utiliza-se de vários prakriyas, que são métodos de ensino peculiares designados para esclarecer todas as dúvidas possíveis sobre a natureza do Ser, cada assunto abordado sob um ângulo diferente, como por exemplo os “três corpos”, “as cinco camadas da personalidade”, “os três gunas” ou “a discriminação entre sujeito e objeto”. Cada uma dessas discussões possibilita uma aproximação diferente ao tema central do vedanta, a realidade una e ilimitada, minha real natureza.
        Para que o questionamento traga frutos em forma de conhecimento, o estudo deve ser contínuo e sistemático. Contínuo, porque a construção do conhecimento é sempre baseada em um entendimento prévio, que forma a base para o entendimento futuro. E como em uma construção onde o tijolo deve ser colocado sobre o cimento ainda fresco, assim funciona o vedanta: sistematicamente, o aluno, através de inúmeras e frequentes aulas com um professor competente, vai removendo uma a uma suas falsas noções sobre si mesmo. O método consiste em ouvir (sravanam), refletir sobre o assunto até entendê-lo totalmente (mananam) e por último, “praticar” o conhecimento, contemplar a realidade não dual e meditar sobre suas implicações (nididhyasanam). É aqui, nesta última etapa, onde o vedanta mostra sua eficácia, pois se a visão de si mesmo, adquirida através do estudo, é livre de conflitos, torna-se natural observá-la em todas as situações da vida prática. Isso é ser “um” com tudo que existe, é deixar o conhecimento invadir a mente por completo através da apreciação intermitente da totalidade indivisível. Um dos frutos dessa apreciação é a neutralização das reações emocionais negativas que brotam da natureza dual da identificação egoica. É a ausência absoluta de conflito no nível subjetivo proveniente do entendimento de que o sujeito é tudo o que existe.
       A mente humana é especialmente talentosa em funções como julgar, separar e analisar, o que torna a tarefa de evitar conflitos psicológicos bastante complexa, pois onde existe “dois”, existe interação e toda interação implica em conflito. No jogo entre causas e efeitos do mundo material não pode haver vencedor. Os efeitos sucedem as causas em um fluxo sem começo nem fim. Diante da transitoriedade das coisas, uma pergunta pode surgir na mente do buscador: “- Como permanecer em paz se tudo muda ao meu redor?”. A resposta está na própria pergunta (apesar da semelhança, isso não é koan zen, é vedanta mesmo). O que nunca muda por trás de qualquer pergunta é o sujeito que faz a pergunta. Na ânsia de obter uma resposta convincente, que nos satisfaça enquanto ego, esquecemos da pergunta principal: “- Quem necessita de respostas e porque as necessita?”.
        O problema é que, sempre que me identifico com o sujeito que faz (por exemplo, uma pergunta), me encontro inevitavelmente perdido em meio a dança das causas e efeitos, sou escravo dos resultados de minhas ações, sou um samsari. Como causas e efeitos não tem começo, nem fim, não posso resolver este dilema através de ações, que gerariam novos resultados. O vedanta esclarece que, visto ser impossível controlar o mundo de modo a satisfazer todos os nossos desejos e então conseguirmos felicidade constante, só nos resta entender e aceitar a inutilidade desta luta e nos apegarmos a quem realmente somos, o palco onde o drama da vida acontece. Essa essência, substrato único de tudo o que existe, sendo ela mesma a própria existência sempre consciente e livre de qualquer atributo, é portanto naturalmente livre de qualquer conflito.
        É importante esclarecer que a ação (karma) nasce do desejo (kama), que por sua vez nasce do senso de incompletude (apurnatvam), este, por fim, nascido da ignorância (avidya). Sem a aceitação de que nenhuma ação pode remover a ignorância, não pode haver o entendimento de que só o conhecimento liberta, pois revela a incoerência do nosso senso de incompletude e limitação. Essa aceitação começa com o reconhecimento de que a vontade individual está submetida a vontade universal, a totalidade de todas as leis naturais, conhecidas e desconhecidas, isvara. A relação de submissão do indivíduo (jiva) perante o todo (isvara) é um dos pilares necessários para dar sustentação as ideias de não dualidade, já que aparta do indivíduo o apego a expectativa dos resultados promovidos por suas ações.
       A verdade é que não precisamos nos preocupar com um problema sem solução. Toda ação  produz resultados transitórios e limitados, e o limitado nunca pode produzir o ilimitado. Se não há uma felicidade alcançável através de ações, só há uma saída possível para este impasse: É o entendimento de que eu já sou a felicidade que procuro, ou como diz o ditado, “se não tem remédio, remediado está”. Sempre esteve e sempre estará. Essa atitude de confiança e relaxamento prepara a mente para que as palavras do vedanta produzam seu efeito, a tão sonhada felicidade sem causa vinda do auto conhecimento, da certeza além de toda dúvida de que Eu sou completo, de que nada me falta. É esta a visão não dual revelada nas upanishads e ensinada a todo buscador sincero que tenha firmeza de propósito, humildade e audácia.


domingo, 8 de janeiro de 2012

A Felicidade não está no objeto - Parte 1




James Swartz
(tradução Carolina Velardi)


    O objetivo da vida é a felicidade. Por nos sentirmos limitados com relação a felicidade, todas as pessoas estão totalmente engajadas em conseguir a felicidade a cada minuto. Quando eu aceito um emprego, me apaixono, leio um livro, como uma refeição, vou ao dentista, oro ou medito, eu espero que a atividade e/ou seus resultados façam que eu me sinta melhor do que me sinto no momento. Não importa o quanto eu me sinto bem, sempre imagino um estado maior de felicidade. Se me sinto péssimo, as minhas ações serão calculadas para remover ou diminuir a minha infelicidade, uma situação que eu vejo como um aumento na felicidade. Quando um estado melhor é inconcebível, eu me afasto de atividades que possam comprometer este estado.
    Tudo é feito pelo bem da felicidade. Alguns acumulam dinheiro, não necessariamente pelo dinheiro em si, mas pela felicidade que supostamente o dinheiro traz. Outros buscam a felicidade na vida praticando esportes porque eles produzem um sentimento de estar vivo além do normal. Nós tomamos químicos, pílulas, bebidas e drogas para mudar o nosso estado da mente para melhor. Ninguém se casa para sofrer.
    A primeira vista, a felicidade parece ser o resultado das atividades. Eu corro, faço jardinagem, medito, ando de esquis e me sinto feliz. Mas se a felicidade estivesse nestas atividades, a atividade deveria produzir felicidade para qualquer um que a fizesse. Doar milhões, faz filantrópicos felizes. Livrar-se de dez centavos é uma condenação para um miserável. Uma avó que faz tricô para se divertir, não vai se divertir pulando de bungee jumping.
    A felicidade pode ser adquirida conseguindo e possuindo certos objetos? Um homem se divorcia de sua mulher porque acha que ela é a causa de seus sofrimentos mas antes que a tinta esteja seca no documento de divórcio, ele a encontra nos braços de outro... que a vê como seu amor. Um bife faz um carnívoro feliz, e um vegetariano infeliz. Apesar deste triste fato, nós nos escravizamos com o passar do tempo para conseguir a felicidade através de objetos e atividades.
Alguns tentam conseguir a felicidade através da mente. Poetas, escritores, artistas e intelectuais encontram a felicidade jogando com pensamentos e ideias, sentimentos e emoções. Profissionais, convencidos de que a felicidade assistida pode ser adquirida através da sabedoria, sujeitam suas mentes a anos de treinamento e suas vidas a sacrifícios incontáveis. Uma pequena minoria, buscadores espirituais, tentam encontrar a felicidade disciplinando-se com orações, meditações, cânticos, respirações ou peregrinações para alcançar estados elevados ou alterados de consciência. O mundo da psicologia acredita que a felicidade pode ser alcançada ao remover barreiras subjetivas... experiências e memórias perturbadoras, conceitos que limitam o eu e pensamentos rancorosos que residem na mente subconsciente.
    Porque nos tornamos felizes quando alcançamos ou objetivo ou um objeto que desejamos?De acordo com a ciência espiritual, todas as atividades são causadas por uma quebra de nosso estado de felicidade natural, uma separação que produz dois instintos aparentemente contraditórios, medo e desejo, que causam muitas emoções perturbadoras. Atrás de todo desejo, há um medo, atrás de todo o medo, um desejo. Se eu não conseguir o que quero, serei infeliz. Evitar o que eu não quero, me faz feliz. Portanto, o medo da infelicidade é justamente o desejo da felicidade. Estas duas forças primordiais... que causam atração e repulsa, apego e aversão, gostos e desgostos... colorem todos os aspectos de nossas vidas.
    Os muitos medos e desejos sutis e físicos que brotam em nossas mentes, vêm de uma necessidade profunda, a necessidade de ser livre de medos e desejos, a necessidade de ser pleno ou feliz. Quando eu digo que quero um carro novo ou um novo amor, eu não quero realmente o objeto, eu quero a felicidade que aparentemente vem com ele.





quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Porque boas pessoas sofrem




Swami Tejomayananda
(tradução - Carolina Velardi)


    “Porque pessoas boas sofrem e coisas ruins acontecem com pessoas boas?” Esta questão parece ser muito comum hoje em dia. Parece que as pessoas boas carregam o fardo de todo o sofrimento, enquanto que pessoas más curtem a vida. Mas se observarmos mais de perto, nós percebemos que todos sofrem de alguma maneira. Tendo isto em mente, nossa questão se torna sem sentido. Só porque uma pessoa é boa, não significa que não há sofrimento em sua vida.
    Mas o que queremos dizer com “boa”? Em sânscrito, “sadhu” é a palavra usada para uma boa pessoa. Sadhu vem da palavra “saadh”, que significa “conquistar”. Se nós trabalhamos para nós mesmos e conseguimos coisas boas, não há nada de louvável nisso, mas se ajudarmos os outros a conquistar seus objetivos, aí sim há uma conquista. Se alguém é bom para você e você aje com reciprocidade, é somente senso de cortesia. Mas se alguém está te fazendo mal, e apesar disso, você continua a desejar o bem a esta pessoa sem esperar nada em troca, isso sim é bondade verdadeira. Um sadhu que estava tomando banho no rio, viu um inseto se afogando. Ele salvou o inseto do afogamento e o inseto o picou. Novamente, o inseto caiu no rio e o sadhu o tirou da água e o colocou embaixo da sombra de uma árvore. Vendo a situação, uma pessoa perguntou ao sadhu: “Porque você fez isso?” Ele respondeu, “O inseto não abdicou de sua natureza, porque eu deveria?”
Como podemos alcançar esta felicidade em nossas vidas? Para alcançar qualquer objetivo, nós devemos primeiramente ter uma meta. Similarmente, para conquistar a bondade, nós devemos ter um padrão de bondade que nos seja familiar, pois somente assim conseguiremos ascender ao níveis desejados. Enquanto ainda vemos diferenças no mundo ao nosso redor, a verdadeira bondade não irá se manifestar. Somente poderá ser alcançada quando nos tornarmos conscientes de nossa unidade com os outros. Um exemplo irá ilustrar este ponto melhor. Todos os órgãos do meu corpo são partes de um todo. Se o dedo entrar no olho, há um perdão imediato, por causa da identificação completa com o dedo.
    Agora que sabemos o que é bom, vamos ver o que é o sofrimento. O sofrimento objetivo acomete todas as pessoas, boas ou más. As situações que levam ao sofrimento podem ter suas raízes em ações passadas. Objetivamente, a existência da dor ou qualquer outra deficiência física não pode ser negada, mas o grau de tristeza que isto acarreta, é totalmente subjetivo. Riquezas ou posições de poder não garantem a felicidade. As pessoas se tornam infelizes por pequenas coisas. Se a pessoa afirma que é boa e está sofrendo, enquanto uma pessoa desonesta está prosperando, nós podemos ter certeza de que a pessoa não é boa. Para um homem bom, o sofrimento real é fazer algo contra suas convivções. Imagine que um vegetariano convicto enfrenta uma situação em que ele pode permanecer faminto ou comer carne, provavelmente a primeira opção seria mais aceitável.
    Nenhuma prática espiritual pode eliminar o sofrimento, mas elas protegem a mente e fazem com que o sofrimento se torne aceitável, assim como em um dia chuvoso, nós não podemos parar a chuva, mas podemos nos proteger da chuva com um guarda-chuva. Bhagavan Krishna diz, “Uma pessoa boa nunca sofre.” Por alguma lógica nós sentimos que o sofrimento e a alegria estão relacionados com ações passadas. Se observarmos no nível sutil, nós encontraremos resultados imediatos de nossas ações. No momento em que um pensamento bom entra em nossas mentes, nós sentimos alegria, e similarmente um pensamento ruim causa agitação.
    O sofrimento real é quando perdemos nossa bondade. Comprometer a nossa bondade é o maior sofrimento. Até quando superficialmente parece que pessoas ruins estão prosperando, não é desculpa nenhuma para nos comprometer. O problema surge quando uma pessoa não tem um ideal ou quando essa pessoa não é capaz de viver pelo seu ideal. Mas o maior problema é quando a pessoa acredita que seu ideal não vale a pena ser vivido e perdeu sua utilidade. Lembre-se, uma boa pessoa é fiel as suas convicções, porque “Se você não é fiel a algo, se perderá em tudo”.



domingo, 18 de dezembro de 2011

Aceitação


Swami Vagishananda
(tradução - Carolina Velardi)

    Há muitas ocasiões na vida, muitas situações na vida que eu posso mudar. Se eu tiver recursos suficientes, eu posso trocar a mobília da minha casa, eu posso comprar roupas novas, eu posso comer fora 3 vezes por semana, eu posso acampar todo fim de semana, eu posso mudar meu corte de cabelo infinitamente. Se fizer frio eu posso comprar um aquecedor, se fizer calor, um ar-condicionado. Um micro-ondas novo... sim há muitas mudanças que eu posso fazer.
    Se eu não tiver recursos mas muita criatividade, eu posso fazer as coisas que faço todos os dias, mas de maneiras novas! Eu posso cozinhar com os mesmos ingredientes, mas o sabor será diferente, e bom. Eu posso colocar a mesa de um jeito novo. Eu posso cantar e dançar de maneira diferente a cada dia e me divertir também. Eu posso mudar o meu apartamento, carro ou emprego.
   Se eu tiver um coração grande, eu posso expressar o amor do meu coração de modos diferentes também. Eu posso mudar minhas atitudes e meu comportamento se assim eu escolher. Eu posso apertar o que precisa ser apertado e soltar o que precisa ser solto. Se eu for muito inflexível e rígido como pessoa, eu posso me tornar mais flexível. Se eu sou crítico e sempre encontro culpados, eu posso tentar mudar isso também. Se eu sempre culpo os outros pelos meus problemas, eu posso averiguar se isso é verdade. Se eu sou uma pessoa que não sabe estipular limites, então eu posso aprender a fazer isso. Se eu sou sempre dependente de alguém e isto se tornou doloroso para mim, eu posso aprender a sair desta situação. Se eu sou sempre medroso, eu posso aprender a encarar desafios corajosamente. Se eu for muito corajoso a ponto de me tornar imponderado, então eu posso aprender a exercitar a precaução.
    Qualquer coisa que eu possa mudar, se eu sentir que eu preciso mudar - Eu devo mudar. Mas eu não controlo tudo na vida. Há algumas situações que são como são, alguns eventos que aconteceram, que eu não posso mudar.

Eu não posso mudar a temperatura do país.
Eu não posso mudar os políticos imediatamente!
Eu não posso mudar o fato que uma pessoa próxima faleceu.
Eu não posso mudar a minha ascendência.
Eu não posso mudar a minha infância.
Eu não posso mudar o meu passado - feliz ou triste.
Eu não posso mudar a minha idade.
Eu não posso mudar a minha aparência com muita frequência.

    Algumas vezes eu tenho responsabilidades familiares, meu chefe é chato e eu não posso mudar de emprego. Acima de tudo, eu não posso mudar as pessoas - isto inclui meus pais, meu cônjuge, meus cunhados, cunhadas, noras, genros, sogros, sogras, meus filhos, meu chefe, colegas de trabalho, funcionários... a lista é infinita. Quando alguma coisa não pode ser mudada, qualquer que seja - quando eu acho que tenho uma incapacidade de ter as coisas como quero - eu me sinto impotente, triste, agitado e bravo. Eu entro em depressão com frequência também.
    Agora vem o fato difícil - a situação não pode ser mudada. Se eu quero que as pessoas mudem, por que elas deveriam? Elas devem querer que eu mude também. Talvez eu também não queira mudar. Ninguém pode fazer uma pessoa mudar, a não ser que a pessoa realmente queira. É assim. Talvez se eu tentar entender o “background” (a experiência de vida) de onde vem essa pessoa, então talvez eu possa entendê-la melhor e sentir alguma compaixão por ela ao invés de raiva. Talvez minhas expectativas sejam irracionais. Talvez minhas expectativas sejam racionais mas a pessoa não pode ir de encontro a elas, ou não quer ir de encontro a elas, ou não pode. Seja qual for a razão, é assim que as coisas são. Não seria mais fácil aceitar graciosamente que é assim que a pessoa é, que a situação é assim, que o meu passado foi assim, que o que aconteceu, aconteceu? Eu não posso fazer nada a respeito. Se eu puder mudar algo, eu irei - se eu não puder, eu aceito graciosamente. Quando eu aceito, há um alívio porque a minha resistência ao fato sumiu. Mas a capacidade de aceitar graciosamente o que eu não posso mudar é algo que eu não sou capaz de fazer facilmente. Mas pelo menos eu vou valorizar isso. Eu vou valorizar, somente quando souber o benefício que vou tirar disso. Para entender o valor da aceitação graciosa, vamos ver o que nós não conseguimos se não tivermos esta aceitação. Então nós podemos ver o que pode nos ajudar.
    Quando eu não estou apto a aceitar um fato que não pode ser mudado - eu me sinto impotente, eu me sinto bravo e ressentido. Todos os meus momentos presentes estão ocupados apenas em me preocupar e pensar e repetir as cenas novamente e novamente. Eu perco a minha auto-estima e destruo qualquer chance de alegria que eu possa ter no presente momento. Vamos supor que estou andando e há um lindo pôr do sol -Eu não estou apto a apreciar esta verdade sobre o meu momento presente - eu estrago meus momentos presentes, me preocupando com o passado, a injustiça, como eu gostaria que a situação mudasse... E se eu continuo com esse estado de espírito de resistência e dor indefinidamente, a minha saúde é afetada. Eu tenho úlceras, problemas cardíacos, dores de cabeça, dores no corpo. Eu não encontro felicidade na vida e a minha tristeza cai sobre os outros que estão ao meu redor. Agora quando o fato é que eu não posso mudar a situação, este estado de espírito me ajuda? Ou me machuca? Claramente eu estou me machucando. Eu quero continuar me machucando? Essa é a escolha que eu tenho que encarar. Eu posso continuar a me machucar por reter essa resistência aos fatos e me massacrar com mágoas e me sentindo mal - ou eu posso apenas deixar ir - aceitando. Conscientemente deixando de lado a minha vontade de resistir a um fato imutável. Eu tenho que ver isso muito claramente e dar valor a paz de espírito e um certo alívio pelos resultados por causa da aceitação dos fatos. Uma vez valorizando isso, então aparecem maneiras de me ajudar a deixar ir.
    A devoção ao Senhor nascida do entendimento de que o Senhor é inestimável. Para entender o Senhor, venha para aulas de Gita! O entendimento de que o Senhor é Todo-Inteligência é enxergar o fato de que qualquer coisa que há na criação está em Ordem, ( até mesmo a desordem está em ordem perfeita!) há um significado por trás disso tudo, há um propósito muito importante. O propósito da minha vida é crescer - talvez por causa destas situações agora eu posso rezar. A devoção crescente na forma de confiança crescente na ordem do Senhor, uma confiança crescente de que cada situação tem um propósito e um significado por trás de tudo e é sempre tudo para o melhor, mesmo que eu não possa entender tudo agora. Eu reconheço que eu sou impotente, aceitando a situação e então quando estou impotente eu procuro ajuda da Fonte de Toda a Ajuda - o Senhor, em uma oração significativa. Procurar ajuda quando é necessário, é viver com inteligência. Portanto eu posso fazer esta oração ao Senhor:

    -Senhor, que eu tenha maturidade para aceitar graciosamente as coisas que eu não posso mudar; que eu tenha vontade e esforço para mudar o que eu posso; e que eu tenha sabedoria para saber a diferença entre o que eu posso ou não mudar.