Breno Lopes
“Quando a
mente perfeitamente controlada, livre da ânsia pelos objetos mundanos, é
direcionada ao Ser, ela permanece no Ser.” (B.G. 6,18)
Parece
existir um consenso, em todas as tradições espirituais, de que uma mente
agitada ou impura é um grande empecilho à realização da Verdade. Concentração,
foco, tranquilidade, são qualidades altamente desejáveis para a realização de
qualquer atividade, mesmo as mais enérgicas. Quando falamos de autoconhecimento,
essas qualidades são fundamentais, chegando mesmo a serem um pré-requisito. A
prática regular de meditação traz como resultado a singular capacidade de
observação impassível do fluxo de pensamentos, assim como a capacidade de
manter a atenção direcionada a um único objeto, o que alguns chamam de “mente
una” (ekagrata).
As
escrituras nos dizem que há um erro básico em nossa percepção da realidade, que
não somos quem pensamos ser e que a realidade é infinitamente melhor do que
nossos sentidos nos apresentam. Dizem com clareza que somos a própria realidade
imperecível, livre de qualquer atributo ou limitação. Á primeira vista,
declarações como esta parecem ser “boas demais para serem verdadeiras”. Nossa
convicção sobre nós mesmos sempre foi a de que somos pessoas, vivemos no mundo
e estamos condenados à morte, inevitavelmente. A visão das escrituras é
radicalmente oposta a nossa visão atual e, portanto, de difícil assimilação. O
mundo externo parece ser real, enquanto o chamado mundo interior, a paz
interior, a alegria do silêncio interno, parece ser irreal, ou pelo menos, de
difícil acesso.
A
felicidade suprema, meta única de toda e qualquer pessoa, é uma porta sempre
aberta, mas cuja passagem envolve um certo grau de esforço e fé. Não falo aqui
de uma fé cega, dogmática e submissa, mas sim da fé que brota da coragem de
assumir a responsabilidade por tudo o que nos acontece, ou seja, pela própria
felicidade. O caminho é individual, a busca é individual, a verdade é um estado
subjetivo e portanto só pode ser apreciada por quem decide ser tudo o que pode
ser, por quem está disposto a “lutar o bom combate”, como lutou o apóstolo
Paulo.
Pois
bem, este combate é interno. Nossa luta se trava no mundo interior, na mente,
que devido ao reflexo da pura consciência onipresente (cidabhasa), identifica-se com o corpo, criando uma entidade chamada
“Eu”, o ego, causa de todos os nossos problemas. A ideia de que somos essencialmente
separados do resto do mundo estabelece as bases de nossa interação com este.
Cria a dualidade, o conflito. Onde há “dois”, existe interação e toda interação
pressupõe finitude, pelo desgaste ou troca inevitável.
Quando
intencionalmente ou mesmo por acaso aquietamos nossa mente, nosso corpo sempre
reage de forma favorável, gerando sensações e emoções agradáveis. A esse
controle do fluxo dos pensamentos e treino sistemático da atenção chamamos
meditação. Uma mente calma, livre de conflitos, possibilita o direcionamento da
atenção ao que realmente nos interessa, a apreciação da felicidade onipresente.
Se o que queremos é vermos a nós mesmos como a realidade ilimitada e atemporal,
precisamos de uma mente treinada a manter o foco e evitar distrações que nos
afastam deste objetivo.
Podemos didaticamente
dividir a prática da meditação em duas etapas complementares. Num primeiro
momento a meditação visa tranquilizar corpo e mente, preparando o terreno para o
desenvolvimento da atenção consciente. Atenção e foco são qualidades
importantes para o estudo que conduzirá o praticante ao conhecimento de si
próprio. Nesta etapa o objetivo principal é a “purificação” da mente, no
sentido de minimizar as manifestações (gostos e aversões) das tendências
individuais (vasanas). Esse árduo
trabalho deve ser complementado e de preferência precedido pela prática de karma yoga, a ação dedicada a Deus,
desprovida de motivos egoístas. Aqui o progresso pode ser medido pela alegria
proveniente da prática, uma alegria que não vem do exterior, fato este que
contradiz o erro habitual de crer que os objetos externos são responsáveis pela
alegria interna.
Após o
conhecimento inequívoco de sua própria natureza, num segundo momento, a meditação
ajuda o buscador a manter-se constantemente identificado a consciência de si
mesmo como eternidade, liberdade e felicidade. Quando o meditador estabelece-se
nesta consciência, que tudo inclui, deixa de ser um buscador, torna-se o que
sempre foi, o Si-mesmo.
Talvez
o efeito mais evidente da meditação seja o contentamento com “o que É”. Sendo o
ego um centro fictício de transações com o mundo, identificar-se com ele cria uma
constante oposição à realidade. Um exemplo prático e corriqueiro pode expressar
melhor essa ideia: Se no momento sinto dor, por exemplo, a mente, para preservar
a “integridade” do ego, cria imediatamente a ideia de não-dor. Mas o que existe
de fato no presente momento, é apenas a dor, e portanto não é possível viver
uma presente não-dor, mas apenas projetá-la em um futuro próximo ou distante. A
pessoa que identifica-se com o ego vive no passado ou no futuro. Recorda o
passado para validar seu estado atual e projeta o futuro fantasiando um estado
melhor. Acontece que a vida, “o que É”, é agora e para sempre agora. Não existe
melhor nem pior, só existe perfeito.
Meditação
é a prática de viver a vida. Que objetivo melhor pode uma pessoa ter na vida,
senão vivê-la? Não vivê-la melhor, isso já fazemos usando nossas estratégias
habituais de manipulação de coisas e pessoas incluindo a nós mesmos, mas sim vivê-la
integralmente, tão intimamente conectado ao fluxo de acontecimentos, que já não
há mais “quem”, apenas “o que”. A personalidade, no estado profundo de
meditação, perde o status de centro pelo qual a vida passa, Ganha um novo
status, o de uma mera aparência, surgindo e desaparecendo espontaneamente e
inevitavelmente como parte desse jogo cósmico que é o mundo dos nomes e formas.
A
realidade desprovida de nomes e formas é pura bem-aventurança-sempre-alerta, a
eterna verdade transcendente pulsando como o próprio coração de toda partícula de
matéria existente. Não é a essência de tudo. Isso dividiria o universo em
essencial e não essencial. É o amplo espaço que tudo abrange e ao mesmo tempo,
que tudo “É”. Para viver esta verdade é preciso ser esta realidade. Meditar,
por este enfoque, torna-se um ato de pura coragem. É deixar de lado passado e
futuro, o que implica em deixar de lado a própria personalidade, e permanecer
na consciência livre de conflitos, livre de carências, plena de si-mesma.
Sentar-se
em meditação é uma aventura de encontro ao Si-mesmo, a realidade única. Para
que tenhamos sucesso nessa empreitada é necessário honestidade e serenidade,
pois precisamos fazer da vontade um instrumento efetivo de transformação dos
hábitos. O discernimento entre o real e o irreal pode na meditação ser
praticado até o ponto onde não haja mais dúvidas sobre a fonte de toda alegria.
Essa fonte é o “Ser”. A alegria que sentimos eventualmente é apenas um frágil
reflexo da alegria abundante que somos desde sempre. E é exatamente por amarmos
a nós mesmos mais do que qualquer outra coisa, que fazemos de tudo para remover
os obstáculos que atrapalham nossa compreensão convicta dessa realidade. E a
realidade sou “Eu”. Toda e qualquer prática visa em última análise manter a
mente num estado de contemplação ininterrupta da realidade, a consciência que
tudo abraça, a única “coisa” que não sofre qualquer tipo de transformação no
presente, passado ou futuro.
O
último e mais difícil obstáculo à permanência em si mesmo, é o apego à alegria
e bem estar resultante do estado de meditação profunda. Este obstáculo foi
apontado por Gaudapadacharya no Mandukya Karika (verso 45):
“Não
devemos deixar que a mente desfrute da alegria proveniente da condição de samadhi. Ela deve ser liberada do apego
a esta alegria através do constante exercício da discriminação. Se a mente
procura sair em direção aos objetos externos, ela deve ser unificada ao Ser
pelo esforço consciente.” (tradução livre)
A
alegria que vem da meditação não pode ser confundida com a consciência que
ilumina todo e qualquer estado mental. Estados mentais vêm e vão, mas a
consciência permanece. A única identificação que possibilita a definitiva
libertação do samsara é a
identificação com o espaço da consciência, livre de pensamentos. Essa
identificação passa pela aceitação das coisas como elas são, de todo o passado
e de todas as condições presentes agora. Passa pela compreensão de que existe
uma ordem cósmica justa e amorosa (isvara) cuidando de tudo, atualizando
momento a momento o fluxo dos acontecimentos. Essa ordem também existe na
consciência e a consciência sou Eu.
A
consciência é livre de qualquer coisa. A única solução possível para o fim do
sofrimento humano é a identificação com essa consciência (brahman). Como fruto desta identificação convicta, a tão aclamada e
aguardada felicidade.